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Ítalo Fábio Casciola Publisher do OBemdito

Italo: Como eram terríveis as viagens naquelas antigas sucatas chamadas ‘Jardineiras’

Nem tudo do passado é nostalgia romântica, existem os dramas que marcaram profundamente a alma e o coração da nossa gente.

O drama das velhas ‘jardineiras’ é algo impensável nos dias atuais (FOTOS: ACERVO ITALO FÁBIO CASCIOLA)
O drama das velhas ‘jardineiras’ é algo impensável nos dias atuais (FOTOS: ACERVO ITALO FÁBIO CASCIOLA)
Italo: Como eram terríveis as viagens naquelas antigas sucatas chamadas ‘Jardineiras’
Ítalo Fábio Casciola - OBemdito
Publicado em 25 de setembro de 2022 às 10h05 - Modificado em 25 de setembro de 2022 às 16h49
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Aqueles ônibus velhos e inseguros demoravam um dia entre Umuarama e Maringá. “Corre, minha gente, que tá chegando mais uma jardineira!”. Esse era o tradicional grito de guerra dos vendedores de passagens que estavam baseados naquele antigo ponto de ônibus, no terreno vazio rodeado pelo pequeno casario da pequenina cidade de Umuarama, atual Praça Arthur Thomas.

Isso lá pelos idos de 1953, 1954, quando o vilarejo ainda estava em processo de abertura no meio da vertiginosa selva. A cidade ainda nem havia sido oficialmente fundada. A colonizadora estava apenas começando o processo de limpeza do terreno da futura urbe e vendendo os primeiros lotes urbanos para quem aparecia com dinheiro e disposto a enfrentar a grande epopeia da construção desta que é hoje a Capital da Amizade.

No meio daquele descampado, cortado por ruas formando quarteirões que ainda não estavam habitados, surgia ao longe aquele velho ônibus, caindo aos pedaços e fazendo barulho terrível de sua lataria meio solta e soltando fumaça pelas ventas de um escapamento que costumeiramente rugia estampidos nas subidas…

Era uma das tais “jardineiras”, veículo de transporte usado à época para cortar os terríveis estradões que pareciam não ter fim deste Paranazão de meu Deus, ainda em estado bruto e sem os menores sinais de civilização. Vinha cheio até o teto, com gente literalmente amontoada em cima daquele ferro velho.

O motorista, às vezes, era o próprio dono do veículo, pois nos primeiros tempos as empresas de transporte coletivo, como a Viação Garcia, de Londrina, ainda não tinham linhas operando por aqui. Além de dirigir, ele fazia as vezes de cobrador e ainda acomodava as “bagagens” no veículo.

Tinha de tudo, menos malas –a maioria dos volumes eram sacos de roupas e panelas, das famílias que vinham se aventurar nestas plagas. Como as viagens eram muito sacrificadas, tanto para os passageiros como para os motoristas/donos das “jardineiras”, as passagens não eram muito baratas, razão pela qual os viajantes economizavam durante algum tempo para poder sair de onde viviam e procurar pelos seus sonhos de riqueza em outros lugares…

Quem não conseguia o dinheiro para vir de “jardineira”, tinha que apelar como último recurso para aqueles andrajosos “pau-de-araras”, caminhões tipo gaiolas cobertos de lonas…

Quando chegava uma “jardineira”, após o sinal de alerta dado pelo vendedor de passagens, era um corre-corre de gente que ficava à espera naquele lugar: os mais apavorados eram aqueles que alugavam quartos de pensões, situadas nos arredores.

Quartinhos com refeições

Eles sabiam que aquela gente ainda não tinha casa para se acomodar, então, pelo menos até se instalar em Umuarama tinham que ficar nesses quartinhos, onde também serviam refeições. Tinha ainda aqueles paus-mandados dos fazendeiros que ficavam recrutando gente para trabalhar na derrubada das matas ou no lavradio das terras.

Geralmente ofereciam uma merreca como salário e davam apenas um teto para viver… Não faltavam ainda os moleques que ficavam vendendo doces caseiros e coxinhas de frango, provocando as crianças que chegavam esfomeadas depois de longas viagens de Londrina, Maringá e de outros lugares ainda mais distantes como Minas Gerais e do Nordeste…

Muvuca tremenda

A chegada das jardineiras era uma muvuca tremenda: mulheres e crianças, principalmente, ralhando umas com as outras, muitas delas chorando irritadas pelo cansaço, fome e sede. Os homens, carrancudos e também sem energia e forças sequer para andar depois de um percurso penoso percorrendo centenas de quilômetros de estradas de terra, cheias de buracos, poeira e barro, promoviam um empurra-empurra para retirar as suas bagagens das “jardineiras”.

Essa pressa, invariavelmente, causava bate-bocas entre passageiros com o motorista, que pedia calma diante daquela turba alvoroçada e louca para tomar o seu destino e poder encontrar um lugar sossegado para comer e dormir.

Viajar numas tranqueiras como aquelas, as “jardineiras”, era realmente uma aventura torturante. Vejam só: os seus bancos eram de madeira, o ônibus era aberto dos lados, não tinha segurança alguma (numa curva, por exemplo, alguém descuidado poderia cair pela estrada afora…) e muito menos suspensões para aliviar os solavancos da estrada.

As “jardineiras”, literalmente andavam corcoveando parecendo burros assustados. Coitadas daquelas crianças que tiveram que passar por esse traumatizante calvário na sua infância. Infelizmente, para aquela gente tão pobre, não havia outro jeito…

Imaginem viajar no alto de uma sucata dessas…

O cúmulo da total perda do senso do medo era que muitos viajores que não chegavam a tempo para ocupar os bancos internos, principalmente aqueles homens esculpidos pela dureza da vida, arriscavam morrer viajando no alto das “jardineiras”, naqueles bagageiros, agarrados apenas aqueles ferros usados para amarrar as bagagens. Comiam poeira a viagem toda…

Quando eu era menino, nas conversas de meu pai, ‘seo’ Bartolo Casciola, com seus antigos amigos naqueles cafés que existiam circundando o velho ponto de ônibus, eles contavam que aquelas porcarias de ônibus eram chamadas de “jardineiras” desde os tempos em que esses modelos chegaram ao Rio de Janeiro e São Paulo, no século 19.

Naquelas cidades grandes, esses ônibus abertos dos lados eram moda, principalmente para as elites paulistana e carioca. As senhoras que passeavam em tais carros naquelas capitais usavam belos chapéus, adornados com “flores” e dizia-se que eram “chapéus de jardineiras”.

Conforme esses carros iam ficando velhos e caíam em desuso por lá, os sucatões eram vendidos para gente de outros Estados, que passaram a usá-los nos transportes no ciclo da colonização de outras regiões, como é o caso de nosso Paraná.

As “jardineiras”, na verdade, não passavam de veículos improvisados: as carrocerias, de madeira dura e rústica, eram implantadas em cima dos chassis de caminhões, deixando apenas a cabine do caminhão de metal, ocupada pelo motorista.

Como eram caminhões, o combustível usado era o óleo diesel, que soltava uma nuvem de fumaça escura e fétida. Depois é que foram sendo adaptadas a outros caminhões mais “modernos”, estes movidos a gasolina, lá pelos anos 1960…

Estes eram chamados de “bicudinhos”, porque a frente deles, de metal, tinha um formato parecido com os bicos de patos. Mas eram igualmente desconfortáveis e continuavam não oferecendo conforto e segurança alguma aos seus usuários. Mas, fazer o quê?, a vida não é justa para todos…

Francamente, hoje, com tantas leis de trânsito em voga, uma porcaria dessas nem sairia à rua sequer. E também nenhum mortal em sã consciência se aventuraria a andar numa máquina maluca desse tipo. Nestes tempos modernos, ainda há quem reclame dos confortáveis ônibus dotados de ar condicionado, poltronas espaçosas e reclináveis, som ambiente, bagageiros amplos, banheiros a bordo, etc…

Chiam também de alguns buracos no asfalto. Ah, se eles viajassem pelo menos uma vez numa “bomba” daquelas, como eram as “jardineiras”, certamente pediriam para sair antes mesmo que o ônibus tivesse percorrido o primeiro quilômetro da viagem, se assim poderia se chamar um martírio como aquele de ter que enfrentar as estradas daquele passado tão difícil e digno de ser esquecido por tanto sofrimento a que os desbravadores foram submetidos para chegar até este fim de mundo!

E tudo isso que conto nesta crônica não é fruto de minha imaginação, não… Quando criança, ao chegar aqui em 1958, e em outras viagens para Maringá com meu pai quando ele ia comprar ferramentas que não encontrava aqui, vivi essas viagens terríveis que pareciam nunca ter fim –dependendo da situação das estradas, demorava até um dia…

Ninguém me contou, eu sou testemunha dessa remota história. Quando viajo hoje nos busões hiper modernos, penso estar num jatão em viagem internacional de tanta beleza, tecnologia e conforto.

Lugar de ‘Jardineira’ é no museu

Aproveito para sugerir que o Poder Executivo de Umuarama compre uma sucata antiga dessas para expor no futuro Museu Histórico para que a nova geração veja com os próprios olhos a sofrencia que era a vida nesta Capital da Amizade no século passado… Nem vão conseguir acreditar como eram feias e rudes aqueles ‘ferros-velhos’ que funcionavam como ônibus, ops!!!, como ‘jardineiras’.

As imagens raras documentam a pobreza e a sucateada situação do antigo transporte coletivo em Umuarama. Quem viajava para Cruzeiro do Oeste, Maringá, Cianorte e Londrina vivia um terrível sofrimento que durava até um dia. E até mais, dependendo a situação da única estrada de terra que existia na época. O drama das velhas ‘jardineiras’ é algo impensável nos dias atuais.

Isso faz do pioneirismo da Capital da Amizade uma legião de verdadeiros heróis, que sobreviveram a tantas amarguras no passado, quando a civilização e tecnologia ainda eram inimagináveis… Nem tudo do passado é nostalgia romântica, existem os dramas que marcaram profundamente a alma e o coração da nossa gente.

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*Italo Fábio Casciola é um dos jornalistas mais experientes do Paraná, publisher do portal Coluna Italo e escreve para ‘OBemdito’.

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