Foto: Tribuna do Interior

Paraná

Coveiro não vai trabalhar e homem é sepultado com auxílio de retroescavadeira, em Fênix

Amigos ficaram revoltados com a falta de respeito à memória do senhor José Carlos Conceição

Foto: Tribuna do Interior
Coveiro não vai trabalhar e homem é sepultado com auxílio de retroescavadeira, em Fênix
Redação
OBemdito
17 de junho de 2021 13h23

José Carlos Conceição tinha 48 anos. Morava junto ao amigo Luiz Acácio Camargo, 61, na comunidade de Bela Vista, município de Fênix. Não tinha filhos, muito menos, esposa. Sujeito educado, trabalhava num bar, o mesmo onde ganhou o respeito da pequena população, de 300 pessoas. Mas, de nada adiantou levar uma vida voltada ao bem. Na última sexta, dia 11, ele foi enterrado por uma retroescavadeira. O coveiro não apareceu. Pessoas que acompanharam o ritual, se revoltaram. Sobre José, disseram ter sido sepultado como um animal. Com o caixão jogado a uma vala. E, por fim, uma máquina espalhando a terra, como uma espécie de “honras municipais”. Sua despedida foi marcada pela ausência de dignidade, informaram.   

Conhecido como “Negão”, José chegou à comunidade ainda em 2017. Na época, veio de São Paulo, com uma família com quem era muito próximo. Mas a turma decidiu deixar o local. José, preferiu ficar. Então, sozinho, passou a morar no antigo lixão. Lá, dormia dentro de latões, apenas forrados com papelão. Numa manhã gelada do inverno, Luiz o encontrou. Vendo seu estado, teve compaixão. E decidiu dar acolhida ao rapaz.

José foi levado para morar na casa de Luiz. Dono de uma venda, ele iniciou uma parceria com o ex sem teto. Com o tempo, passaram a ser amigos. “Na verdade, eu tinha uma relação de irmão com ele”, disse Luiz. A proximidade foi tanta que a própria família do comerciante o adotou. Uma das filhas de Luiz disse que “Negão” era mais que amigo. “Ele tinha muito respeito por nós. Cuidava do meu pai, dos meus filhos. Perdemos um grande irmão”, disse.

Nascido na Bahia, José passou a trabalhar e morar com Luiz. Era o seu braço direito. Por ser honesto, lidava com o caixa da venda e, vez em quando, fazia os pedidos do negócio. Ele também zelava dos galináceos ao fundo da casa. Carpia a horta e estava pronto para qualquer missão. Por ser “adotado”, passou a ter um carinho enorme com a família de Luiz, a quem também começou a chamar de sua. A bem da verdade, José era um gentleman. Um homem simples, mas elegante demais no convívio humano.

Ele jamais estudou. Era analfabeto. Teve três irmãs. Duas continuam na Bahia. Outra está em São Paulo. “Ele sempre mantinha contato com elas. Inclusive, estava pronto a viajar para encontrá-las. A viagem seria esta semana”, contou Luiz. Mas ele não teve tempo. Assim como não teve tempo para usar uma calça jeans nova, ainda com etiqueta. E três pares de tênis, ainda nas caixas. A ideia era levar a roupa nova para usar na Bahia. Queria estar bem vestido, para mostrar que estava bem.

O quarto em que morava era aos fundos da venda. Um imóvel antigo feito todo em madeira. Mas dentro da casa de Luiz. Os dois moravam lado a lado. José tinha um lar. Em dias de folga, se sentavam no sofá para ver jogos de futebol. Faziam pipoca e tomavam uma gelada. E este era o único “pecado terreno” de José: o álcool. Embora tomasse sua cachaça e depois se recolhesse ao quarto, jamais deu problemas por beber. Aos amigos, em tom de brincadeira, um dos defeitos de José era apenas torcer ao Vasco da Gama. Ele adorava usar a camisa do time.

Luiz conta que aprendeu muito com o amigo. Um dos ensinamentos foi dormir na rede. Hábito comum dos baianos. Nas tardes de folga, os dois se espalhavam, cada um na sua rede. E com a prosa calma, aos poucos, pegavam no sono. Um ao lado do outro. Além disso, o maior aprendizado foi pegar parte da humildade de José, a quem define como uma alma de intensa luz. “Ele era do bem. Honesto, amigo, pacífico. Um irmão de verdade”, disse. Agora, olhando o interior da venda, ele sabe que ela não está mais completa. Falta a presença de José.

“Negão” virou uma espécie de lenda na comunidade. Todos se referiam a ele como muita ternura. Era respeitador. Dócil. Gentil. Acreditava em Deus, embora não fosse adepto de igrejas. Às crianças, tinha um trato meigo. Adorava conversar. De vez em quando, se sentava numa das cadeiras da venda. E tomava o seu trago. E, na correria dos finais de semana, embora sem estudo, aprendeu a dar troco. Fazia continhas básicas de matemática. Tudo pra ajudar o amigo Luiz.     

A morte e a retroescavadeira

Sempre trabalhador, na última quarta, dia 9, José teve febre e passou mal. Foi levado à unidade hospitalar de Fênix, onde tomou soro. Mais tarde, retornou à comunidade de Bela Vista. Na quinta, 10, não teve fome. Passou mal novamente, sendo levado mais uma vez até a cidade. Mas, com o estado preocupante, foi encaminhado até a Santa Casa de Campo Mourão. Chegou vivo. Mas morreu às 23h, segundo o laudo, por causas desconhecidas.

Já na manhã de sexta, dia 11, o corpo chegou à comunidade por volta das 9h. Foi velado na capela do cemitério até às 14h. Para a família de Luiz, estava tudo certo. O coveiro apareceria e o ritual aconteceria, como é de costume. Mas, enquanto José era velado, uma máquina retroescavadeira da prefeitura chegou e fez uma cova, exatamente ao lado do corpo da esposa de Luiz, Maria, morta em 2016, vítima de leucemia.

Para o espanto da comunidade, não se tratava de uma carneira, mas sim, de uma vala, como se enterram animais. No entanto, não havia tempo a mais nada. Juntos, amigos de José apanharam o caixão e o depositaram calmamente no buraco aberto. Sem a presença do coveiro, a própria máquina fez as honras municipais. E espalhou a terra conforme a mecânica permitia. “Muita gente se revoltou com aquilo e correu para pegar enxadas. Não fosse a vontade dos moradores, ficaria de qualquer jeito”, disse Luiz.

“Ele era uma ótima pessoa. Todo mundo gostava dele. Humilde, educado, respeitador. Isso não se faz. Faltou respeito com ele. Abriram um buraco como se enterra um animal. Todos aqui estão revoltados”, disse uma mulher da comunidade, que preferiu não ser identificada. De acordo com ela, o coveiro não apareceu. Um vídeo do momento em que a máquina enterrava o caixão foi gravado e depois, viralizou em grupos de whatsapp.

Porque o coveiro não apareceu?

De acordo com populares, Fênix possui dois coveiros. Naquele dia, um estava de férias. O outro, não. Mas ele não apareceu. De acordo com o vereador Edinho Malaquias (PP), a Câmara de Vereadores já determinou uma reunião com o prefeito Altair Molina Serrano (PSD), ainda esta semana. O objetivo é investigar o porque o servidor não compareceu ao enterro.

Segundo ele, o município conta com um coveiro concursado. E um segundo “coveiro”, com cargo em outro setor. “Este segundo não é concursado como coveiro e o primeiro alega que não foi avisado sobre o enterro”, disse o vereador.

(Por Dilmércio Daleffe, Tribuna do Interior)

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